Fonte: www.gazetadopovo.com.br
Em outubro de 2020, em razão das medidas emergenciais adotadas pelo governo no enfrentamento da pandemia de Covid-19, a dívida pública do Brasil atingiu 87,6% do Produto Interno Bruto (PIB), o maior nível da série histórica do Banco Central (BC). Um ano depois, com a retomada da economia, o indicador já havia recuado para 80,4%, e o consenso do mercado via uma tendência de queda, até o patamar de 78,3% ao fim de 2030.
A dívida, porém, caiu muito mais rápido. Bons resultados fiscais nos últimos dois anos fizeram a relação dívida/PIB encerrar 2022 em 73,5%, a menor desde julho de 2017. Agora, porém, o mercado financeiro projeta novamente uma trajetória crescente para o endividamento do país, com uma dívida equivalente a 90,4% do PIB ao fim da década, conforme a mediana das projeções coletadas pelo relatório Focus, do BC. Para o fim de 2023, o ponto médio indica uma dúvida de 78,6% do PIB, mais de 5 pontos porcentuais acima do nível do ano passado.
O indicador é uma das referências utilizadas por agências internacionais de classificação de risco para avaliar a solvência de um país. A mudança drástica nas expectativas em alguns meses resulta de uma série de acontecimentos para além da mudança na Presidência, mas mostra o desafio que a equipe econômica de Luís Inácio Lula da Silva (PT) terá pela frente – a começar pelo novo arcabouço fiscal que promete apresentar até abril.
Como a dívida pública caiu em 2021 e 2022
O primeiro fator que ajuda a entender a oscilação nas projeções foi o cenário global favorável que ajudou a impulsionar as contas públicas nos dois últimos anos do governo de Jair Bolsonaro (PL). No início de 2021, o mercado estimava uma curva ascendente na dívida pública, com previsão de chegar a 2030 com um indicador acima de 97%, o que acabou sendo revisto ao longo do ano.
Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica, em análise publicada em janeiro, que a surpresa positiva “derivou em parte expressiva de fatores positivos que não exatamente refletem a política fiscal corrente – embora seja inegável que a reforma da Previdência aprovada em 2019 e a contenção real do salário mínimo nacional e nominal da folha dos servidores também contribuíram para a melhoria dos resultados fiscais”.
“Estávamos em um momento de retomada da economia mundial, que foi seguida por uma valorização muito forte de preços de commodities, com destaque para o preço do petróleo, que subiu muito no final de 2021 e permaneceu elevado ao longo de todo o ano de 2022”, diz o economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos. “Isso fez com que a arrecadação do governo com tributos crescesse de maneira que surpreendeu a todos.”
Para se ter uma ideia, a receita líquida primária estimada pelo governo federal no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2022, apresentado em agosto de 2021, era de R$ 1,596 trilhão. Ao fim do ano, o montante chegou a R$ 1,856 trilhão – isto é, R$ 260 bilhões a mais que o projetado.
O resultado foi um superávit primário de pouco mais de R$ 54 bilhões na União, ante uma meta original que era de déficit de R$ 170 bilhões. No setor público consolidado (que inclui estados e municípios), o saldo positivo foi de R$ 126 bilhões, ante uma estimativa inicial de déficit de quase R$ 50 bilhões.
As receitas associadas ao setor extrativo mineral, principalmente com petróleo e gás, corresponderam a 1,8% do PIB em 2021 e a 2,6% em 2022, bem acima da média de 0,9% entre 2011 e 2020, segundo o Ibre/FGV. “A gente tinha até então uma regra fiscal, o teto de gastos, que restringia a elevação de despesas e que atuou muito bem nesses momentos em que se tinha a arrecadação em alta”, ressalta Sbardelotto, da XP.
Aumento de arrecadação à parte, também ajudaram na redução da dívida pública operações de swap cambial e valores devolvidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao Tesouro Nacional. Somente em 2021 e 2022, o banco de fomento liquidou antecipadamente R$ 135,3 bilhões em recursos que haviam sido captados da União.
Como a principal régua de endividamento público é calculada a partir da relação entre a dívida bruta do governo geral e o PIB, o próprio crescimento da economia ajudou a reduzir o indicador.
Por que o mercado voltou a projetar trajetória crescente da dívida pública
Mais que o aumento da taxa de juros, emendas constitucionais aprovadas para permitir a expansão de gastos acima do teto legal deterioraram as expectativas em relação à trajetória futura da relação dívida/PIB. Se em outubro de 2021 a mediana das projeções indicava uma tendência de queda de 6,6 pontos porcentuais no indicador entre 2023 e 2030, hoje vislumbra-se um crescimento de 11,8 pontos no período.
“Não é coincidência que esses saltos da expectativa da trajetória da relação dívida/PIB até 2030 tenham acontecido após a aprovação de PECs [propostas de emenda à Constituição] que, de tanto contornar, acabaram por desmoralizar por completo o papel de âncora fiscal desempenhado pelo teto de gastos federal criado pela EC 95/2016”, escreveu Schymura, do Ibre/FGV.
O economista refere-se à promulgação das PECs dos Precatórios, em dezembro de 2021, dos Benefícios (também chamada de “Kamikaze”), em julho de 2022, e da Transição (ou “fura-teto”), em dezembro de 2022, que, juntas, permitiram aos governos de Bolsonaro e Lula gastar um total de R$ 248,45 bilhões fora do teto constitucional de despesas.
Diante de um quadro de desaceleração da atividade econômica em razão da taxa de juros – o mercado projeta um crescimento de 0,76% em 2023, segundo a última edição do boletim Focus –, o aumento de gastos naturalmente leva a um aumento na relação dívida/PIB.
O que pode ser feito
Em janeiro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou um pacote de ajuste fiscal que teria o potencial de inverter o déficit de R$ 231,5 bilhões previsto para este ano no Orçamento para um superávit de R$ 11,1 bilhões, em um cenário otimista. O próprio ministro, no entanto, já admite que a meta é ousada e vê como viável zerar o déficit em dois anos.
A Instituição Fiscal Independente (IFI) calcula que o país teria de fazer um superávit primário de 2,5% do PIB em 2023 para estabilizar a dívida. Para os próximos anos, a instituição considera que seria necessário um resultado de 1,5%, em média, para manter a dívida em proporção ao PIB, considerando um crescimento real médio de 1,9% e juros reais implícitos de 3,9% ao ano.
“A forma como a questão da sustentabilidade das contas públicas do país será endereçada no curto prazo representará um importante elemento de dispersão das incertezas e de reconquista da credibilidade da política fiscal”, diz relatório da IFI publicado em janeiro.
Para Sbardelotto, da XP, o governo pode sinalizar que vai estabilizar a dívida por meio da proposta do novo arcabouço fiscal, que deve ser apresentada nos próximos meses. “Se o mercado verificar que é sustentável a dívida, a gente tem um processo de melhora das expectativas, tanto para o crescimento econômico quanto para a inflação”, diz.
“Com essa melhora de expectativas, abre-se espaço até mesmo para o Banco Central promover uma redução de juros mais rápida e, com isso, reduzir o custo sobre a dívida. É um círculo virtuoso que se cria, mas que depende, claro, de como vai ser essa proposta”, afirma.
Ele acredita que no médio prazo, há espaço para ajuste nas contas. A retomada da tributação federal sobre combustíveis, uma reforma do sistema de impostos – que inclua a taxação de lucros e dividendos e um teto para deduções do Imposto de Renda da Pessoa Física – e a revisão de benefícios tributários são algumas das opções do lado das receitas.
Do lado das despesas, a revisão do cadastro do programa Bolsa Família também é apontada por diversos analistas como um caminho para o corte de gastos desde que foi constatado um crescimento exagerado no número de famílias unipessoais, ou seja, compostas de apenas um membro. O ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias, indicou que a medida deve ser tomada a partir deste mês.
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